segunda-feira, janeiro 23, 2006

Evangelho engomadinho


Foto: Sélio Morais

Num já distante fim de semana, me colocaram de surpresa dentro de uma rádio comunitária localizada em Japeri – uma distância sem fim, aqui, no estado do Rio –, que tem alcance de frequência em vários outros pequenos municípios vizinhos. Seu "estúdio" minúsculo e muito quente mal comporta duas pessoas, e as precárias instalações me fizeram congeminar se alguém ouvia o que saia daquele único e mal conservado microfone. Iniciado o programa da tarde, me impuseram o atendimento aos telefonemas. Penso que ao todo foram doze, um número nada mal para um empreendimento desse porte.
Atender àquelas ligações transformou-se em uma janela para um mundo que comodamente ignoro, de gente cheia de marcas, dores e quase nenhuma esperança. Vi, ao largo, uma existência muito abaixo da minha. Crianças que não precisam de segurança para brincar nas ruas, até porque elas não existem, mas para dormir em paz sem serem tomadas à força por aqueles que deveriam dar-lhes amor, aconchego e rumo. Nesse mundo, frequentemente o homem da casa não volta mais. “Foi atrás de uma vadia”. Se voltar, estará bêbado e agredirá mulher e filhos; as meninas engravidam aos 12 anos e estão apaixonadas pelos “heróis” da área; as mães retornam de um dia de trabalho muitas vezes sem nada ter a oferecer aos filhos; os guarda-roupas de pedaços velhos de compensado não guardam mais do que trapos e sapatos velhos obtidos em campanhas de doação. Famílias que nunca foram estruturadas. Crianças que nunca tiveram lápis e caderno à mão.
Nessa janela me debrucei e vi que meu evangelho não conhece e não alcança essa gente. Não inclui iletrados, idólatras, ignorantes, marginais ou presidiários porque é arrogante, hedonista e egoísta demais para isso. Meu evangelho não ora com a mãe do traficante para que ele se lembre do caminho em que foi instruído e se arrependa, mas, sim, para que o corrompido Estado se erga e me ofereça mais segurança para que eu ande com os vidros do meu carro abertos sem que o filho dela me incomode.
Meu evangelho alimenta-se de Bíblias caras, em várias traduções e versões; consome vorazmente cds importados de um mercado fonográfico bilionário, dvds de “achoração”, autores internacionais, suas coleções e estudos teológicos cheios de imperativos de prosperidade e conquistas. Ele é nobre, é cabeça, ocupa cargos públicos e eletivos, multiplica meus dízimos e ofertas por 30, 60 e até 100 vezes. Dá casa própria e carro do ano, compra terrenos e constrói mega templos, compra rádios e horários na televisão.
Meu evangelho está podre de rico, cheio de teologias e doutrinas, e esqueceu-se dos pequeninos, do próximo, da viúva, do aflito, do desamparado, do faminto, do injustiçado e do encarcerado. Esqueceu-se do Senhor, e precisa, desesperadamente, unir-se aos telefonemas que atendi e também clamar por socorro e misericórdia.

"Porquanto dizes: Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um coitado, e miserável, e pobre, e cego, e nu; aconselho-te que de mim compres ouro refinado no fogo, para que te enriqueças; e vestes brancas, para que te vistas, e não seja manifesta a vergonha da tua nudez; e colírio, a fim de ungires os teus olhos, para que vejas. Apocalipse 3.17-18

Marcelo Belchior 01.06

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Presunção Gospel

Poucas coisas são tão humanas quanto a capacidade de sentir-se melhor que o outro. É esse sentimento que nos faz perceber o erro alheio como um absurdo e o defeito como imperdoável. Em sociedade é fácil identificar os exacerbados na prática da supremacia, pois as ruas estão cheias de olhares altivos e presunçosos que delimitam nitidamente os degraus socioeconômicos. Sentimo-nos melhores por qualquer banalidade: porque sou branco, porque sou alto, porque sou homem, porque estudei, porque possuo, porque herdei... uma infinidade de superioridades enganosamente estabelecidas.
O orgulho impede-nos de enxergar a obviedade da igualdade, e é estranho perceber que temos prazer nesta cegueira. Fosse o resultado só a delimitação territorial não seria tão danoso, mas os problemas de todos os gêneros nos relacionamentos, invariavelmente, esbarram no orgulho e na vaidade. Sem a sensação de superioridade, perdoaríamos mais facilmente, seríamos mais predispostos à ajuda, à cooperação e ao entendimento. Aceitaríamos mais as diferenças, exatamente porque somos todos iguais.
Infelizmente, este mesmo comportamento manifesta-se dentro da igreja evangélica. Nossa intolerância contra o comportamento daqueles que nominamos pecadores, pagãos, incrédulos, e, em voga, ímpios, nos habituou à sensação de mais dignos. Afinal, segundo a Bíblia, somos salvos, alcançados, amados, filhos e herdeiros de Deus. Eles nada são. Não somente interpretamos assim como também agimos de maneira que isso fique bem claro.
Praticamos o isolamento quando na verdade o que Cristo pregou foi separação consensual, mas estando perto, e andando junto, nos conquistou e transformou sem jamais nos acusar ou repudiar.
Esquecemos do amor, da misericórdia, da longanimidade, da igualdade e linearidade na qual somos todos formados, e já saboreamos, por isso mesmo, o gosto amargo da estupidez quando, sob um faccioso e extremo calvinismo, estabelecemos em Genebra leis dirigidas por doutrinas religiosas, perseguindo e matando opositores em nome de Deus, sempre crendo fortemente que somos escolhidos, e os incrédulos preteridos. Crônico.
Antagônico o comportamento daqueles que esperam de si mesmos serem benignos, bondosos e mansos. Sal e luz para o mundo.
Como abismo chama outro abismo, também aprendemos a apreciar a sensação de melhores que os irmãos: a nossa oração, sim, Deus ouve e atende. Afinal, somos mais santos, mais justos, mais consagrados; nossa denominação é a melhor, salvação só por meio dela; nossa igreja é a maior, a correta, a veraz; pregamos melhor e com mais veemência o Evangelho; somos pastores mais capazes, doutores, phDs. A tolice não conhece freios: somos também deputados, senadores, somos bispos, apóstolos, thDs, sumo-pontífices, somos tudo, quase Deus; menos cristãos de verdade.
A presunção, sem dúvida, toma grande parte no nosso atual estado de doença, ou como já nos alertava a parábola: de sonolência. As dez virgens dormiram, mas graças a Deus que, no lance seguinte, o noivo bate à porta.

“Ora, as obras da carne são manifestas, as quais são: [...] as inimizades, as contendas, os ciúmes, as iras, as facções, as dissensões, os partidos, as invejas [...], e coisas semelhantes a estas, contra as quais vos previno, como já antes vos preveni, que os que tais coisas praticam não herdarão o reino de Deus. Mas o fruto do Espírito é: o amor, o gozo, a paz, a longanimidade, a benignidade, a bondade, a fidelidade, a mansidão, o domínio próprio; contra estas coisas não há lei. E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências. Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito. Não nos tornemos vangloriosos, provocando-nos uns aos outros, invejando-nos uns aos outros”. Gálatas 5.19-26 Marcelo Belchior – 01.2006